A cabeça de Jorginho
Uma manhã preguiçosa
A cabeça de Jorginho anda uma bagunça. Já acorda com a cara no celular e, se deixar, passa o dia inteiro deitado na cama, só inventando merda. Jorginho tem dificuldade de amadurecer, não consegue assumir responsabilidades, pouco ou nada se interessa pelos estudos, não tem planos pro futuro… terrível a situação. A Vovó Pintura só piora tudo fazendo as vontades do menino.
― Jorginho! Vovó fez bolo pra você!
― Tô indo... O bolo é de quê?
― De paisagem de inverno, do jeito que você gosta, com muita tinta! Levanta enquanto tá fresquinho!
― Hmm... É... Até que não tá tão ruim... Podia ter um pouco mais de branco no azul... ― responde com a voz grave de quem ainda está acordando.
Rafael Alonso, Vovó fez bolo pra você, 2022 – óleo sobre compensado, 33 x 40 cm
Assim, muito lentamente o garoto levanta, se lambuza com seu café da manhã, sem pressa. Afinal de contas, o dia de Jorginho acontece segundo sua vontade. O bolo é composto por tintas nacionais e importadas de boa pigmentação e corpo espesso, ideais para esse tipo de trabalho. A fatura é vigorosa, parece ter sido resultado de uma sessão rápida, algo em torno de 20 minutos de trabalho intenso com a espátula. O chassi é construído de maneira rude, com grandes pregos de ferro aparentes na lateral e ripas de madeira clara mal aparelhada. O aspecto do bolo é, no entanto, bastante gracioso. Talvez resultado da soma de suas dimensões pequenas e do singelo tema da casa nos Alpes.
Rafael Alonso, Ninja, 2020 – guache sobre papel, 30 x 30 cm
Jorge de Carvalho tem pelo menos quatrocentos anos, mas não aparenta, engana bem. Sua aparência juvenil parece se sustentar às custas de roupas da moda e uso de gírias da ocasião. Sua supostamente infinita capacidade de absorver os temas do momento impressiona tanto os pares de geração que, como era de se esperar, envelheceram, quanto os mais jovens, que, apesar de possuírem corpos teoricamente mais fluidos e preparados para nosso tempo, muitas vezes não sustentam a mesma disposição para o diálogo que o velho garoto.
Aí parece residir o segredo da juventude de Jorginho, sua infinita disposição para a conversa. Adora papear sobre qualquer assunto, o que parece ter herdado da avó. Adora também filé-mignon com arroz à piamontese, isso não sabe dizer muito bem por quê. Já o gosto por carros herdou de papai, claro. As velocidades, todas, máximas, médias e mínimas, são objeto de adoração do rapaz. Inclusive a capacidade de suspensão do tempo interessa muito ao sujeito.
Sua Kawasaki Ninja modelo 2007 vive estacionada na rua, no final de uma ladeira de paralelepípedos centenários gastos que dificultam o equilíbrio em dias de chuva, nada que detenha nosso intrépido motociclista. A Ninjinha chama atenção – além do custo-benefício imbatível para um jovem de renda inconstante – por seu verde inglês característico. A soma dos pigmentos ftalocianina e cromato de chumbo (azul e amarelo, respectivamente) ao cromato de titânio (branco) produz o verde característico dessa popular família de motocicletas.
O guidão, espelhos, manetes e manoplas, assim como a pintura da carenagem, ostentam inúmeros ralados – cicatrizes de pegas antológicos realizados pelas ruas da cidade. A saturação do verde também não é a mesma de outrora, resultado de muitas e muitas horas de baixo do forte sol subtropical. Tudo isso, ao invés de conferir à moto um aspecto malcuidado, atesta sua intensa experiência sob o comando de Jorginho. Ou melhor, não se trata de comandante e comandado, a relação entre as duas partes diz mais respeito ao centauro, constructo simbiótico do corpo orgânico e do corpo sintético.
Rafael Alonso, Ifood, 2020 – guache sobre papel, 30 x 24 cm
O corpo de nosso jovem herói também é coberto de marcas de sua existência inconsequente. Seu pé esquerdo, destroçado por uma queda, foi reconstituído usando partes de papel Canson Montval 300 gramas e uma paleta reduzida de guaches Talens. O membro é estruturado na vertical, fortemente guarnecido por duas barras retangulares negras que conferem, além de equilíbrio à arquitetura compositiva, considerável contraste tonal. Esse contraste é responsável pelo aspecto de urgência da imagem, semelhante aos anúncios do Ministério da Saúde no verso dos maços de cigarro fumados ocasionalmente por ele. O processo não é tão objetivo quanto pode fazer parecer a narrativa. As formas geométricas negras foram, pouco tempo depois de instaladas, acometidas por fungos esbranquiçados que comprometeram toda a harmonia tonal da composição. Felizmente a infecção fúngica foi tratada com rapidez e o papel pôde ser salvo. É sempre perigoso usar papel por aqui.
Recentemente Jorge sofreu outro gravíssimo acidente. Desta vez, o dedo indicador da mão direita terminou dependurado após uma malsucedida tentativa de passagem de guarda diante de uma faixa marrom num treino de jiu-jítsu. Desde criança, ele pratica a modalidade, entrando e saindo das academias conforme seu desejo, claro, sempre. Por consequência, apesar da afinidade com a arte marcial, nunca foi capaz de atingir grau superior ao de faixa azul. O azul da faixa, por sinal, merece um comentário. Ao contrário dos quimonos que se mantêm brancos, azuis e negros, ocorreu ao longo dos anos uma mudança no matiz e, mais significantemente, na saturação do azul das faixas dos praticantes. Não sei se em decorrência de algum constrangimento cultural, reflexo do ambiente masculino das academias, o azul bebê – um cobalto dessaturado – foi substituído por um azul ultramar saturado e vibrante. Jorginho achou uma tristeza, gostava das tonalidades tradicionais. Fantasiava que, à medida que fosse progredindo de grau, da faixa azul-clara para a roxa saturada, passando pela marrom de valor tonal baixo até chegar à preta, a ausência absoluta de luz, ele estaria deixando para trás certos vícios cromáticos juvenis. Teria atingido a maturidade. Uma pena.
Rafael Alonso, Se fudeu, 2020 – acrílica sobre compensado, 36 x 28 cm
Voltemos ao dedo. Que infelicidade tremenda a de um pintor, cuja prática é essencialmente associada à mão, ter sua ferramenta de trabalho avariada. Jorginho é canhoto e, vejam só, quanta inocência, imaginou que seu dedo direito não faria tanta falta. Logo ao sair com a mão imobilizada da clínica em que constatou a fratura total da primeira falange, percebeu que não conseguiria pilotar sua moto adequadamente. A manopla do acelerador, bem como a manete do freio dianteiro, ficam localizadas na parte direita do guidão. Chegou em casa a duras penas, acelerando e freando como pôde pela madrugada. Os dois meses seguintes passaram lentos com a interrupção da grande maioria de suas atividades práticas que envolviam o manuseio de objetos (quase tudo). Com o tempo, habituou-se ao desconforto do dedo imobilizado a noventa graus em relação ao punho, outro dado que ele não havia considerado. Outro ponto não levado em conta pelo pintor era a quantidade de vezes que teria de explicar a situação ao longo dos dias para uma quantidade de pessoas diretamente proporcional às que fosse conversar. Lembrem-se, ele adora conversar.
Impossibilitado de realizar ações do dia a dia, até mesmo dormir adequadamente, o jovem desenvolveu um passatempo bastante singular. Passou a inventar motivos diversos para a fratura a cada vez que era perguntado. O mais utilizado, tanto por motivo de eficácia no afastamento dos curiosos, quanto pelo impacto causado nos mais sensíveis, era o de que havia prendido o dedo no quimono de um lutador de jiu-jítsu numa tentativa de passagem de guarda malsucedida. Complementava a história narrando as cores do dedo quebrado ao longo dos meses, passando do amarelo para o laranja, dali para o azul-claro, roxo saturado, marrom escuro até o negro profundo. O dedo, dizia ele, havia feito o caminho cromático inverso até chegar novamente ao amarelo. O percurso cromático variava de acordo com o gosto do pintor, o importante era produzir acordes visualmente contundentes a cada sessão.
Jorginho abre a janela e, após calmamente devorar sua pintura de fatura gorda matinal, observa o movimento do mundo, deslocando a barra de rolagem de seu aparelho celular na vertical. À medida que usa seu polegar esquerdo para empurrar as imagens, ele decide seu destino para o período vespertino.
Rafael Alonso, Arara estéreo, 2022 – acrílica e óleo sobre linho, 130 x 170 cm
Observar corpos ultra bronzeados, torneados e sem cabeça? Assistir a pores do sol belicosos numa grande tela de formato horizontal e trilha sonora wagneriana? Experimentar a contraluz do litoral norte do estado numa cidade fantasiosa de tradição hippie? Atirar em pássaros hipersaturados contra fundos abstratos analógicos que sugerem padrões digitais?
Uma tarde acelerada
Rafael Alonso, Niterói é longe, 2021 – acrílica sobre compensado, 16 x 50 cm
Atravessar os treze mil duzentos e noventa metros da ponte é tarefa habitual para os niteroienses, mas, para Jorge – acostumado a deslocamentos muito mais curtos e enérgicos –, a travessia dura uma eternidade. Ainda mais considerando os diversos radares limitadores de velocidade. Pelo menos a paisagem é pitoresca. Isso já diziam os frequentadores de séculos anteriores.
A capacidade do vovô garoto de estabelecer estratégias de pilotagem diferentes para cada ocasião se torna um trunfo nesse momento. Para percorrer a grande reta horizontal em velocidade constante, o pintor mergulha a moto numa solução aquosa que torna o deslocamento muitíssimo fluido. O acorde de azul, vermelho e amarelo ziguezagueia com constância e firmeza invejáveis ao longo do trajeto, sempre acompanhado por um grande sol laranja.
É intrigante pensar que, sendo a ponte uma via de mão dupla, o pedágio só seja cobrado quando se desloca para aquela cidade. Sair é de graça. Como se fosse um nada sutil lembrete da natureza excludente daquelas paragens. Um clube apenas para membros associados.
De algum modo, a ponte lembra a relação com seu pai. O velho História, apesar de ter mais ou menos a mesma idade do jovem, tem autoridade moral sobre o comportamento do filho. Jorginho percebe o quanto se parece, o quanto possui características em comum com o velho História. Ao mesmo tempo, sabe também que a coerência narrativa apresentada por papai se sustenta às custas de excluir, apagar, silenciar tudo que não interessa a seus relatos. Por isso talvez ele tente com tanta força estabelecer para si outros parâmetros.
Jorginho não perde tempo pensando no que não gosta. Sempre que se chateia com alguma coisa ele se lembra que ao voltar pra casa receberá algum mimo da vovó. Ele deixa pra trás as ideias que o aborrecem e mira a enorme montanha que avista assim que chega à cidade vizinha. Essa tarde promete!
Rafael Alonso, Lo vedo tutto, 2022 – acrílica sobre compensado, 170 x 130 cm
Diante da imponente formação rochosa, Jorginho lembra da Mãe Mercado, de sua generosidade e acolhimento sem fim. Quer dizer, o acolhimento e generosidade são de igual proporção à dedicação do filho em atender seus pedidos. Ela não pede muito, na verdade. Está sempre pronta para receber nosso jovem e seus amigos, tolera os arroubos juvenis e as ideias mais estapafúrdias, desde que seja avisada previamente para precaver as visitas eventuais. Agradar as visitas é parte fundamental da existência da Mãe Mercado. Todos sabem disso, a avó, o pai, o filho.
Nem sempre tudo sai como combinado, nessas horas a mamãe fica furiosa e não mede os castigos. A parte mais cruel é que os castigos são silenciosos, ela jamais demonstra seu descontentamento. Nessas ocasiões, as vítimas de suas punições só percebem que foram submetidas às correções quando sentem a solidão gélida em que se encontram. Algumas vezes ela aceita desculpas, outras não...
Em diversos momentos, ela própria produz os eventos para que o filho se divirta. Digo, ele se diverte sem saber que na verdade está servindo de atração para os convidados da mãe. Isso é uma das maneiras dela garantir para si o controle das ações. Outras vezes ela manda o papai intervir com sua autoridade, o que funciona bem também. Vejam só, o garoto que gosta de motos e araras e bundas tem que pensar o tempo todo se vai desagradar a mamãe e o papai.
Rafael Alonso, Caçadores de emoção, 2021 – acrílica sobre compensado, 90 x 90 cm
Mas, por falar em bundas, Jorginho se dá conta de que a tarde tem outro propósito. Tem mais o que fazer, além de tentar elucidar as estruturas de suas relações familiares. Parte para uma sessão de surfe de sunga clássica em Itacoatiara, o swell de geosmina nessa época do ano é especialmente saboroso para os que têm paladar apurado. As gradações de terras verdes translúcidas, ora mais amareladas, ora mais avermelhadas, ora mais opacas e leitosas, transformam cada onda numa articulação complexa de
Rafael Alonso, Geosmina Swell, 2022 – acrílica sobre compensado, 26 x 39 cm
sabores. Essas sessões são muitos mais divertidas em dupla e surfadas em suporte rígido de madeira de lei reaproveitada. Um privilégio dos corajosos, claro. Mas coragem nunca faltou, e não seria nessa tarde memorável de quinta-feira que ela o abandonaria. Coragem ou a conhecida inconsequência dos jovens? Tanto faz! – diz ele –, o importante é seguir no free surf. É muito comum para os soul surfers como Jorginho a escolha das ondas pela cor e pela espessura da tinta, não importando muito as condições do chassi e dos pincéis.
Falando de free surf, chassi, tintas e pincéis, parte da curtição é experimentar pranchas com formatos diversos, eventualmente encomendadas, mas na grande maioria das vezes construídas com ferramentas próprias e materiais encontrados durante as andanças pela cidade. Papai fica muito orgulhoso da independência do garoto, mamãe em certas ocasiões acha que o filho poderia caprichar mais no acabamento e na seriação dos objetos. Mas ele não tá nem aí, continua dropando nos resíduos da sociedade de consumo, nas ruínas do capitalismo tardio. A confiança em sua capacidade de negociar para se manter sobre a prancha beira a sandice, um tow-in delirante no espaço lixo.
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― Fala, doidão! Beleza?
― Cara, seguinte, tô com um garanhão árabe na bunda e não consigo saber muito o que fazer com ele. Tem alguma ideia?
― Bicho, que maneiro! Coisa linda! Deixa eu pensar aqui... Pô, bora botar ele pra correr, dar uma suada, jogar essa energia equina pra fora... Partiu?
― Hmmm... Sei não, cara, e se eu perder o controle, começar a gostar?
― Ahhhh... Deixa de ser garoto, pô! Bora lá! Tá com uma máquina dessa aí dando mole e vai ficar de bobeira??
― Então tá, partiu!!!
― Ahhhh, muleeeque! Não falei que cê ia se amarrar?!
Rafael Alonso, Il sogno nel deserto, 2022 – acrílica sobre compensado, 120 x 90 cm
― Wooohoooo!!! Demais, Jorginho! Tirou onda, leque! Garanhão tá todo suado, lindão! Brigadão!!!!
Rafael Alonso, Fuck off!, 2022 – acrílica sobre compensado, 40 x 60 cm
Fim de tarde chegando e Jorginho sabe que chegou a hora de voltar pras suas bandas. Decide que vai voltar de lancha, aproveitando o pôr do sol da baía. Descola um peguinha clássico com sua lancha equipada com dois motores de popa. Afinal, todo marinheiro sabe: quem tem dois motores tem um, e quem tem um motor não tem nenhum. A quantidade de motores tem muita relação com o uso que se faz da embarcação. Dois motores pequenos numa embarcação de casco largo podem imprimir um desempenho muito aquém do desejado para uma prova de velocidade. Felizmente não é caso de Fuck Off, lancha pilotada por nosso intrépido aventureiro. Seu casco leve, todo construído em compensado naval, revestido de massa corrida muito bem lixada, absorve com tremenda gentileza as pinceladas violentas e precisas de Jorginho enquanto corta a baía azul. Diferentemente da ida, na volta, o piloto imprime velocidade máxima na aplicação dos materiais. Exceto na pintura do casco, momento em que invariavelmente ele deve utilizar máscaras de fita crepe para manter as arestas bem definidas. Um secador de cabelo garante que, mesmo na feitura do casco, ele não perca tempo com a secagem, algo muito difícil em se tratando de uma pintura de mar. A prótese fálica de nosso jovem herói rasga as águas salobras da Guanabara e entrega sua encomenda em menos da metade do tempo de ida.
Ele não sabe muito bem por que corre tanto na feitura das pinturas, parece algo que desenvolveu ao longo dos últimos anos, após o advento da tinta à base de água. Mas acha mesmo que pode ter a ver com o frenesi produtivo que assola os artistas de sua geração. Mas e daí? Ora bolas! Só pinta rápido quem pode!
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Uma noite alucinante
Rafael Alonso, A cabeça de Jorginho, 2022 – acrílica sobre compensado, 80 x 50 cm
Para se preparar para a terceira parte da aventura, Jorginho realiza seu ritual de praxe, escolhe um chassi robusto o suficiente para projetá-lo para fora da superfície bidimensional da parede e toma uma chuveirada. A água – feita de azul cerúleo com branco, amarelo Nápoles e vermelho de cádmio, também com uma pitada de branco – é densa e alucinógena. Após secar seu corpo meticulosamente, põe o capacete amarelo cromo ultrapolido e baixa a viseira espelhada. Durante a noite, a cabeça de nosso pintor se separa do corpo, por isso o capacete é de vital importância. Muitas vezes as duas partes passam longos períodos existindo separadamente, algo que se por um lado sugere sofrimento, por outro permite que o pintor viva experiências com o corpo que, eventualmente, a cabeça atrapalharia. Mas não seria prudente deixá-la de lado sem um mínimo de proteção. Daí, a importância do elmo reluzente. Uma vez com o corpo lavado e a cabeça pronta para receber fortes impactos, ele monta mais uma vez em sua besta de pelagem verde-clara e parte sem destino pela cidade.
Uma fina chuva dourada começa a cair. Seduzido pelo brilho das incotáveis gotas cintilando contra a luz azul do farol, o pintor segue pilotando deliciosamente pelas linhas vermelhas e amarelas que cortam o balneário. Enquanto o volume da precipitação aumenta, ele adentra a floresta de destroços digitais carregados por enchentes anteriores. A mata tem aspecto denso, pinceladas de infinitos matizes de verde se justapõem e sobrepõem ocupando quase toda a superfície do plano, exceto pelas bordas, inundadas de líquidos amarelados e alaranjados. Boiando no meio da vegetação serrada estão destroços geométricos de matizes saturados, alguns muito visíveis, outros mais submetidos à ferocidade dos verdes. Nosso herói percebe que há algo de familiar nos fragmentos digitais flutuantes, mas não consegue lembrar onde já viu as peças. A torrente de imagens é muito intensa e, devido à
Rafael Alonso, Chuva dourada, 2018 – acrílica sobre compensado, 160 x 200 cm
velocidade do veículo, uma exurrada atravessa violentamente as retinas de Jorginho. Ele abaixa a viseira e segue acelerado, não sabe exatamente quando, mas intui que a vegetação cerrada logo vai dar lugar a outras paisagens. Esse é um dos problemas da vida em fluxo constante – não é possível prever as distâncias que se vai percorrer, já que os trajetos são quase sempre novos. Ele avista uma estreita via tricolor e decide seguir, torcendo para que a chuva passe e a mata de destroços fique para trás.
A questão é saber se os cenários são realmente novos ou se são eventos meticulosamente produzidos pela Mãe Mercado. Lembrem-se, silenciosamente ela gosta de controlar os passos do garoto. Jorginho vive desconfiando, ora acredita estar abrindo clareiras novas para si, ora acha que tudo não passa de uma grande encenação orquestrada por mamãe. Ele suspeita, inclusive, de que não seja o filho único dessa mãe. Por vezes, andando por uma dessas vias, ele percebe semelhanças com outros seres, um material aqui, uma premissa conceitual acolá, uma enorme legião de filhos únicos...
Nessas horas em que as coisas ficam confusas demais, ele separa a cabeça do corpo e segue pilotando. Leva os olhos consigo e deixa o resto da cabeça se virar com o capacete. Com o corpo, tenta sentir os prazeres proporcionados pelos tamanhos diferentes, pelos volumes, pelas espessuras...
Assim sendo, clareira nova ou encenação, cessam os ruídos da cabeça e sobram as impressões do corpo. No fim, ele gosta disso, mais do que qualquer outra coisa. Das sensações.
Atravessa a estreita avenida tricolor e desemboca num grande plano cinza opaco. Como já não tem cabeça, não é capaz de lembrar das referências que Pai História insiste em jogar na mesa durante as sessões de carteado aos sábados. Simplesmente passeia pela grande arena tonal, que, em conjunto com formas curvas azuladas, sugere profundidade e planaridade ao mesmo tempo. Não há mais uma avenida diagonal que leve Jorginho para fora ou para dentro do espaço, o passeio é, nesse momento, flutuação. Um corpo que não sofre mais influência da gravidade. Justamente por isso, por ser um grande campo sem pesos, é necessária uma sólida moldura neon, capaz de conter os olhares devaneantes dos observadores. Os cantos são curvos, sem arestas rígidas, de maneira que os olhares sempre voltam suavemente para dentro da composição. Não há centro e também não há canto. Não há moral, não há conflito, apenas flutuação.
Rafael Alonso, Olho, 2020 – guache sobre papel, 24 x 18 cm
Dizem que os matadouros mais modernos do centro-oeste são construídos dessa maneira. O gado é conduzido por uma espiral suave, sem a tensão habitual das câmaras de abate abertas e arestadas. Os animais entram calmamente e, quando estão aconchegados pelo conforto da instalação, são submetidos a uma corrente elétrica arrebatadora. Passa por seu corpo uma quantidade de energia descomunal, dizem que os animais atingem o êxtase e caem com os membros rígidos e sorriso no rosto. A sensação, dizem, é tão boa que muitos bois repetem o circuito indefinidamente, ou até serem contidos por seus matadores impacientes.
Rafael Alonso, Olha a EX PLO SÃO, 2019 – acrílica sobre compensado, 120 x 90 cm
A lembrança do matadouro perturba nosso herói, que – como vocês sabem – não gosta de esquentar a cabeça com o que não diz respeito a ele. Mas ele sente um tesãozinho também. Tem vontade, lá no fundo, de experimentar entrar na espiral calma e eletrizante do centro-oeste, só pra ver se é isso tudo que dizem. Como anda ainda sem cabeça, não se lembra bem se já esteve num desses lugares. Acredita que sim, mas, pra ter certeza, só mais tarde, quando colar novamente a cabeça no corpo.
Enquanto seu corpo se deleita com as sensações do mundo pictórico, sua cabeça trava um embate com Mãe Mercado e Pai História. Avó Pintura, nesse momento, fica de longe observando a intensa argumentação entre os três. Ela sabe que, no fim do dia, Jorginho vem até ela, atrás do aconchego proporcionado por sua culinária cuidadosa.
Mãe Mercado não se contém e pergunta ao filho o porquê de tanta instabilidade, tanta mudança de direção, tanta mistura de materiais, tanta falta de acabamento. Será que tem que ser todo dia essa festa? Não dá pra se preservar um pouco? Que mal faz passar algumas décadas repetindo o mesmo procedimento? Ela diz que papai está lá justamente pra isso, assegurar que a recompensa venha, caso Jorginho tenha paciência e exerça o papel que lhe foi designado.
Pai História também argumenta, dizendo: não é que ele não possa fazer suas estripulias, ele já foi jovem, ele entende. Mas diz que o filho pode fazer isso dentro de casa, sem dar nas vistas, ou, pelo menos, prestar atenção ao redor, ver se não há um espectador atento e disposto a emitir algum juízo sem que Pai História tenha feito a higiene correta do local.
A essa altura, a cabeça do rapaz já está prestes a explodir. Pensamentos homicidas passam por ela, mas ele sabe que as coisas não vão se resolver como mágica. Assim como ele suspeita não ser o filho único desse caso, suspeita também que existam mais pais e mães à espreita, esperando sua hora de assumir os papéis vagos.
Ele decide que é hora de colar corpo e cabeça novamente, pelo menos por enquanto. Não é uma operação trivial, a de soldar novamente as partes. Primeiro, é necessário que as duas peças se encontrem, o que não é simples, já que o corpo está vagando no mundo do deleite sensorial. Ele avista o tronco junto dos membros e parte em perseguição pelo campo abstrato, atravessando sucessões de ritmos e pinceladas cheias de bravura e vazias de sentido, até que consegue, finalmente, se acoplar ao resto de si mesmo. Intrigante é a descoberta de que cabeça e corpo podem se encaixar das mais diversas maneiras, e, no frenesi do momento, a cabeça de Jorginho cola justamente em seus quadris!
Rafael Alonso, Abadá personalizado, 2020 – acrílica sobre compensado, 130 x 160 cm
Essa nova composição deixa nosso herói bem menos hierárquico: ao invés de um corpo vertical, submetido às vontades da cabeça, passa a ser articulado pela junção quadris/cabeça. Se, por um lado, ele não consegue mais pilotar sua Kawasaki Ninja com a mesma destreza de antes, por outro, estabeleceu uma conexão direta entre suas ancas e seus olhos, uma configuração que permite ao nosso herói experimentar a cidade por um ponto de vista inteiramente renovado. Jorginho percebe ainda que, caso queira, pode novamente se soldar em outras infinitas configurações, experimentando assim ilimitadas formas de estar no mundo. Finalmente, nosso jovem herói chega em casa, após quase vinte e quatro horas ou quatrocentos anos de curtição. Vovó já deixou pronto seu lanchinho da madrugada. Ele pensa, satisfeito consigo mesmo: papai e mamãe que se virem! Estudei muito pra não precisar ser sério! Eu tô aqui e vou continuar curtindo a vida adoidado!
Pollyana Quintella
texto para o site 'A palavra solta' sobre a exposição individual Olho Grande, Galeria Athena, Rio de Janeiro - 2020